regina - nome de chocolate e de mulher

05 novembro, 2021

Estações

Regina lia-lhe os silêncios - sinais de recolhimento a si mesmo, mas levando-a na bagagem ... é na espera e, depois, no usufruto de sinais, que caminhamos para a Estação, rompendo com os apitos da partida, porque não comandados por nada exterior a nós. E lá vamos, como loucos, dia ou noite, agarrados aos perigos ou aos mistérios, crentes na absoluta possibilidade de sabermos não nos deixar morrer.

25 junho, 2008

Singelo Conto

Saudosa das suas radiografias de existência, voltou aos seus textos onde se despia e vestia de Regina.
A convite de uma das suas amigas predilectas, foi com ela, serra acima, rumo a uma casa de sóbrio xisto e despojada história, dar as boas vindas ao Solstício de Verão. É que esse era o seu dia mais risonho, mais longo e mais carismático: o dia do seu aniversário!
Não precisava de o dizer a ninguém; toda a gente conhecia as alegrias do seu dia de ter visto a luz...
A São também o sabia bem e, como tal, tratou de a presentear com a mais curta noite do ano, plena de conversa bordada a lembranças doces e a silêncios entrecortados por ronronar de gatos na eira ou por um chilrear de pássaros na madrugada do dia dedicado à Música Europeia - os pássaros, pensou, não têm nacionalidade!
Depois do cumprimento das efemérides e de horas e horas de amigos, família e descontracção, seguiu viagem, com a mesma amiga predilecta, para uma noite de santos populares, encontrando um Porto desabrigado e chuvoso - orvalhadas de S. João eram aceitáveis; chuva, não! Apesar disso, pendurando sorrisos, como quem coloca balões de papel no rosto de sua casa, lá foram festa adentro, ouvindo os típicos sons da cidade em frenesim - martelinhos e onomatopeias de satisfação.
Mas a sua Ribeira, num instante, começou a adensar-se, a encher-se de tal modo que não havia sequer um pequeno espaço em que Regina pudesse respirar fundo como, por vezes, tinha necessidade de fazer - um inspirar a plenos pulmões...
E fugiu; subtraiu-se à multidão que a desaconchegava, apertando-a.
Sempre com a sua perfeita amiga, enveredou por uma rua amistosa e muito mais serena, recuperando o seu perímetro de conforto de ar.
De repente, lembrando mais uma vez o seu tão bem compreendido Paul Auster, o fantástico autor dos perfeitos acasos, eis que o conto surgiu: era um tempo inscrito no tempo em que Coimbra albergou três seres cheios de sangue quente e de sonhos vivos - anos setenta em ebulição... Seres que, passado tanto tempo, relembravam que existiram num tempo forte, cheirando a mitos ancestrais... É que alguém interpelou estas duas mulheres, oferecendo-lhes um generoso Porto vivenciado em varanda de Fogo de Artifício pujante, intenso, mágico...
A cidade estava incendiada de ânimo e Regina sentiu-me perfeita, estimada, feliz.
Dia seguinte, ao som de sinos de sol alto, foi presenteada com o mais insuspeitado brinde - um balão de S. João veio morrer-lhe aos pés, implorando ser ressuscitado aos seus cuidados de telas, ao seu feitiço de mãos...
S. João, sempre!
Para sempre este singelo conto.


19 abril, 2008

Tatuagens em metamorfose

Em frágil barco, Regina entrou nas albufeiras do seu olhar, cor de água mansa, e foi deslizando pelas palavras daquele ser, que lhe saíam em correntes de nascente e de foz.
Com ele percorreu os rituais de conforto de mesa posta para o diálogo de silêncios, de aromas e de texturas de um Alentejo perene. Provou, como em fotografia, o colorido do pão e os condimentos de ervas e de chão.
E contou cinco – cinco seres em consanguinidade de vida, com a certeza de, eternamente, viverem entrelaçados uns nos outros, numa simultaneidade de cuidados que não sabia como apelidar! Filhos que eram pais e mães uns dos outros; pais que eram filhos, numa brincadeira de vai e vem de tempo ao contrário.
E viu-o florido de letras, palavras e frases, que se aconchegavam à sua pele, como tatuagens em constante metamorfose.
José Luís, trinta e alguns anos de existência, muitos milhões de segundos para habitar a vida e vestir a sua casa de dicionários de olhares em sabedoria de gargalhadas, que lhe dão a filosofia dos dias. É que, quando não fala, ri com lucidez, através de um semblante sempre sereno, em constante jogo de contrastes de terras de alegria e de crueldade do mundo.
Regina foi escrevendo o seu texto nos neurónios da emoção e quando o escritor se calou, pensou em surdina: - Quero, para sempre, este agora que ficará guardado na gaveta das coisas sem matéria; será gravado mesmo por dentro dos veios da madeira do ser.

14 fevereiro, 2008

Delta

Regina queria dar um presente de palavras em dia de S. Valentim. E disse:
Familiarizar-me,
grão a grão,
com os teus gestos,
esperando o tempo da safra do café.
Rotular-te em lote especial
para depois te saborear...
só nos dias de festa!

07 janeiro, 2008

Ciclos

Regina apercebeu-se disso quando a noite ia crescendo... Percorreu todas as ruas da sua vila de aconchegos e, com uma tristeza súbita, fez esta constatação: apagaram-se as luzes do Natal!
Sempre ansiava, quando o Inverno nascia, que as noites chegassem coloridas de pontos de celebração e festa... Isso iluminava-lhe o sorriso e permitia-lhe retomar, casa dentro, afectos de paredes engalanadas de bolas de cristal e fitas de seda carmim.
Então, os dias adensavam-se de azáfamas e o cheiro da canela em pó dava ao ar que respirava fragrâncias de um Oriente que só conhecia dos livros - dos livros das Mil e Uma Noites.
É que ela vivia em função do tempo forte dos mitos, pois sabia que a imaginação era o alimento predilecto de todos os Homens; e isto desde os tempos mais remotos...
Agora, acreditando que os meses de Inverno hão-de, em breve, ter os dias contados, começa a esquecer o cenário de apagão de energia festiva e, por dentro da sua camisola de lã, só consegue fantasiar uma nova Primavera que voltará a nascer como sua irmã de luz natural.
No promontório do seu meio século de existência, e com um entusiasmo controlado de quem vive sem futuro rigidamente delineado, sabe que o Natal se reacenderá e apagará na altura certa, bem como o seu aniversário, as estações do ano, o dia e a noite, mas nunca o ar que respira; é que ela sente-se mortal, apesar da imaginação...

27 outubro, 2007

"... e o Porto aqui tão perto!"

O branco da folha de papel à frente de Regina - silêncio! A atenção dada ao que ela quer dizer e não sabe.
Sente, isso sim, um peso acinzentado por sobre os seus ombros sólidos - ela tem andado num disfarce de ânimo e de boa disposição; mas a sua casa de afectos está oca... Tem-se ouvido, pelo cair do dia, uma ameaça de solidão que ela vai preenchendo com a cegueira de quem não quer olhar, mas vê!
Assim, neste sábado de tempo que passa mais devagar por tudo, ela assume um vazio de passado recente, que parecia de luz intensa, mas que se revelou extinto, mal começou a clarear...
Ainda há pouco tempo se ria, por dentro, da conversa sólida, partilhada e dos ritmos do desejo que saltitavam na sua pele macia, sempre disponível ao toque com sentido.
A sua casa está sombria, mesmo com um sol brilhante que entra por todas as janelas brancas e despojadas.
É tempo de um nada que Regina aqui e agora assume!
Colocada a tónica na ausência de cor, vamos lá, Regina, venha o som da tua gargalhada de alegrias de tudo; que emane a tua criatividade, que tão bem geres em quadrinhos quadradinhos de doçuras, porque mesmo que estejas quase morta neste pontual deserto, as paredes de uma afável galeria de arte, no Porto, vão ficar, muito em breve, ao alcance de uma exposição de ser - de tu seres...
Doçuras, chamar-lhe-ás! E onde lhe vais colocar a amargura? Em nenhum lugar...

20 outubro, 2007

Olhando-te

Ao som de Satie, Regina assim escreveu:
...
Viajo com os teus olhos
Que me encaminham pelo teu tempo
Olhando o mapa das cidades que relembras de cor...
O teu olhar enche-se de um colorido feliz
Sempre que revives as auroras rosadas
Dos teus sonhos de homem livre
Atento à poesia da respiração das coisas.
Seduzes-me com o teu abecedário de emoções
E olhas-me num afago de beijos por dar.
Eu observo o pestanejar da tua atenção retrospectiva
E deixo-me conduzir pelo cheiro das tuas memórias
Acompanhando-te nas tuas incontornáveis perdas de cinza...
Sei que esses olhos
Me hão-de chamar aos teus braços
Num calcorrear de alegrias
Em trote sem freios
De terra por lavrar.

23 setembro, 2007

A Mão que Oferece e a que Apunhala

Só depois de ter chorado é que Regina conseguiu dar início ao texto.
Tinha estado, nos últimos dias, agarrada a uma dor com nome, mas sem rosto...
Após o dia de trabalho, sabia-lhe bem, de vez em quando, dar-se ao luxo de um ócio cheio da inconsequência de uma mesa de esplanada, virada para a serra encimada de turbinas eólicos que, àquela distância, se lhe afiguravam como cata-ventos de Feira Popular.
Nesse lugar divagava sem relógio, a partir de cenários tão inócuos como o de um avô e um neto que, nas proximidades, acolhiam o fim do dia numa calmaria de retemperador regresso ao lar.
Idoso e criança retomaram a caminhada para casa e Regina continuou a deambular sentada, olhos postos na serra, percebendo como as turbinas subiam e desciam, tal como a roda da vida de todos os homens.
E foi nesse aparente abrandar do ritmo do mundo que recebeu, tal bofetada directa nos seus neurónios, a notícia; aquela que pertence ao inventário das más, pois eram essas que, como ela bem sabia, corriam depressa: o avô daquele neto que, momentos antes, se sentara por perto e que parecia, como Regina, sentir o bálsamo de mais um crepúsculo, tinha estado em contagem decrescente, preparando os detalhes do abismo - o dele, é certo, mas principalmente o de algumas pessoas de paz.
Fechou o pequeno neto em casa, passou pela cozinha para se apetrechar de inocente faca de alimentos e, degrau a degrau, subiu sem cerimónias. Ele ia cumprir aquilo a que a sua justiça louca o obrigava... E cumpriu... E matou... Tendo por espectadores a mulher deste senhor mal amado pela sorte, que começou paulatinamente a desfalecer exangue e os seus dois pequenos filhos, na maior cena de espanto e dor que alguma vez se irá repetir.
Meses atrás, o assassino tinha-se sentado à mesa do último Natal dessa família, convidado pela mão de uma generosidade boa e ingénua...
A tragédia espelhava-se, dia seguinte, nos olhos dos habitantes da Lousã, à medida que a notícia se espalhava pelas pequenas ruas silenciosas e incrédulas.
Na Igreja Matriz surgia, noite dentro, a informação do dia e da hora de um enterro absurdo e Regina, aproximando-se devagar, para poder interiorizar um rosto que desconfiava identificar, ficou muito tempo perdida, de olhar vagueando contra a parede - é que alguém tinha rasgado a fotografia do homem que, depois de mutilado em vida, o era agora, também, na morte! Quem continuava a assassinar?
Apeteceu-lhe, em pleno adro da igreja, gritar as vísceras lúcidas da sua indignação!

25 agosto, 2007

Prazeres

Lembrava-se bem da luz, do som, do cheiro do bairro, quando corria sem preocupações de metas. Por ali andava, alheia aos trabalhos de casa, que eram sempre adiados, num prazer de constante fuga para a frente...
À hora das refeições, perante o zelo de uma Ermelinda que se desfazia em magias de sopinhas passadas, fugia para qualquer uma das casas da vizinhança, onde se acotovelavam famílias extensas e, devido à sua contagiante sedução, alguém acrescentava mais um prato à redonda mesa, engrossada de fome e couves galegas.
Regina saboreava a sopa e o cenário, sempre atenta a tudo o que coloria o mundo.
De regresso a casa, já o seu prazenteiro estômago tinha sido consolado com a força de todo um quintal em fundo prato.
Continuou, vida fora, porque nascida e criada em Trás-os-Montes, a apreciar o que a terra generosamente oferece aos homens, habitando paredes-meias com a gula, que só era pecado por lhe criar ansiedades estéticas com um peso de meia dúzia de quilos!
Sabe que nunca lhe será fácil resistir aos prazeres da carne, do peixe, do marisco, da fruta ou dos doces, mas também acrescenta, frequentemente, este pensamento: - Para o jejum, tenho a inevitável eternidade...
E com um sorriso guloso, atira-se velozmente a uma majestosa ameixa Rainha Cláudia...

23 agosto, 2007

Tapetes Rolantes

Vivia com um cérebro instalado por dentro de todo um corpo de pele macia, dourada pela luz de Agosto...
Reorganizava a sua casa, com pequenos acertos de conforto singelo, tão ao seu gosto, percorrendo lojas de utilidades domésticas, sedutoras de saldos.
O que se usava ou não usava, era realidade que não a incomodava, portas adentro, vestindo o seu lar com condimentos de canela e intimismo.
Dezenas de quadros, seus e dos amigos, construíam as paredes coloridas de paisagens, colagens abstractas ou mesmo imagens de denúncia social, tão ao seu jeito visceral.
Num fim de tarde ventoso e desconfortável, imergiu em compras de cestos e almofadas, com olhos de avaliação de espaços e de equilíbrio e, sem quaisquer cuidados, que não estes, deslizou, tapete rolante abaixo, para retomar a estrada de regresso ao sossego de cama com livros...
Mas o seu olhar de curiosidade aproximou um outro que ascendia, tepete rolante acima, a um provável serão de café, montras e lazer.
Os olhares rolantes fixaram-se um no outro e o reconhecimento dos seus seres desenharam-se em sorrisos de uma alegria viva e não disfarçada.
Os olhos do seu interlocutor de sorrisos não tinham empalidecido! Mantinham a cor e o brilho que recordava de um encontro passageiro, uma década atrás; continuavam com aquela sagacidade que a deixava desejosa de diálogos inteligentes.
Não sabe se os tapetes da existência de ambos lhes vão trazer comunicação rolante, fluída, mas sente, bem ao jeito de Paul Auster, como estes encontros inesperados são capazes de lhe fortalecer a vida...

19 agosto, 2007

A Varanda de Regina

Juntou os vários pedaços de madeira que encaixaram como puzzle de solidez; e eis que uma mesa surgiu - pequenina, quadrada, útil.
Rodeou-a de duas cadeiras e animou, uma delas, com o seu corpo em fim de tarde de verão!
Havia um sabor a livros, a lanche e a céu.
Um pensamento urgente invadiu-lhe as células da crítica: - Que fizeste da Regina?, interpelou-se.
E foi-lhe brotando um sentimento de poder; de poder voltar à potência das palavras... Olhou-se e achou graça ao seu corpo aquietado, deslizando pela cadeira lânguida. Pensou no universo que, agora mesmo, estava a construir - uma casinha/varanda com apenas 8m2, mas onde nada faltava: vasos de cactos, as suas plantas favoritas (por se lhe assemelharem!), um céu garantido diariamente, uma serra que continuava a dar-lhe o mote das manhãs verdes e, como havia referido, letras para comer, beber, para se embebedar de literatura!
Foi deixando a noite entrar paulatinamente e, quando se apercebeu, uma estrela acenava-lhe de forma brilhante e cúmplice, dizendo: - Vive esse sossego de fim de dia; amanhã, se quiseres, terás muito mais. Inventa a tua vida porque nada mais vale a pena! A existência é para ser sonhada; é por isso que os artistas, mesmo quando morrem, continuam a existir como estrelas eternas!!!

14 abril, 2007

Suborno...

Vai uma família para férias - uma mãe, um pai e dois pequenos filhos!
Escolhem um destino - a Ilha da Madeira, com as suas imponentes ravinas e os seus horizontes de água mansa...
A alegria é comum a todos - descontracção de músculos e pensamentos.
O tempo está cálido e os sorrisos dão-se sem tempo.
As crianças brincam ao faz-de-conta e, num segundo imperfeitamente real, uma delas cai, com corpo quente e suado, ribanceira abaixo, deixando as suas humanas marcas, de pedra em pedra...
Corpo que arrefece, mas que pulsa; cuidados intensivos para dar vida a um ser entre esta e qualquer coisa de negro e silencioso.
À medida que os dias vão passando, retoma-se a voz, recrudesce a esperança.
Um menino que se reanima e reaviva.
Regina, inventando um timbre firme e nada vacilante, aconchega com palavras uma mãe que, naquela ilha, anseia por exorcizar pesadelos.
É em alturas como esta que Regina lamenta não acreditar em deus, fosse ele qual fosse, para o subornar com doces, com sorrisos, com uma sussurrante frase: - Que este ser não se vá, como foram dois dos seus irmãos!

13 abril, 2007

Voz com flores...

Regina acordou da agitação de sonhos vivos e complexos, que lembravam um congresso de realizadores, os seus favoritos, numa mescla de Ingmar Bergman com Woddy Allen, de Visconti com Almodóvar! Todos se deliciavam a sugerir cenas entrecruzadas e, por vezes, bem bizarras!
Sacudindo a letargia física e cansada de tanta estética emocional e intelectual, foi espreguiçar-se na sua varanda que irradiava luz e cadeiras de lazer - raios e espaldares em alongamentos matinais.
Sentou-se e escutou o céu que, da janela em frente a sua casa, se corporizava em sons de instrumentos e voz - a voz de Viviane que lhe oferecia o glamour de flores parisienses, em primaveras nunca efémeras. E misturou a sua voz com as fotos de Robert Doisneau, num preto e branco de beijos dados em paz quente e colorida.
O desconforto, porque achava que havia sempre um desconforto, mesmo que pequeno, em tudo, veio-lhe de um som de motorizada de século passado - um som irritante e acinzentado.
Não resistiu à curiosidade, porque tinha sempre os sentidos em sentido, e olhou: do cinzento, o tal cinzento pesado de chumbo, surgiram dois corpos; um de homem e outro de mulher. Via-os do promontório do seu olhar atento e, inevitavelmente, surgiu o poema visual: um homem cinzento e uma mulher cinzenta, em cima de uma motorizada cinzenta - que protagonistas desinteressantes para um texto que ela pretendia colorido!
Ilustrando aquela banda sonora de voz de mulher afirmativa e sensual, aquela que lhe surgia em decibéis de ar lavado, eis que a cena se compôs em final de harmonia - nas mãos rugosas da mulher, que segurava o casaco amarrotado e sem brio, do homem, surgiu um ramo de flores; flores em tons pastel, discretas mas viçosas, numa delicadeza de florista briosa, emanando um aroma de festividade feliz.

23 março, 2007

Mergulho na Cor...

E, por causa do seu quadro amarelo e azul, Regina recebeu um presente de palavras:
"Um esgar de amarelo afigurava-se por entre as parcas nuvens, que o fitavam do alto.
Rodando no seu lugar, mudou a perspectiva da sua visão sobre a esfera celeste, constatando que em nada variava – continuava o mesmo azul, o mesmo amarelo, que o olhavam lá do alto, ambos com a mesma expressão.
Com um suspiro, deslocou a sua concentração para o horizonte observando, atentamente, o mesmo tom de amarelo que o olhava, agora debaixo, e que o intrigava tanto.
Num piscar de olhos, apercebeu-se de que o tempo passava e que todo o horizonte se apresentava amarelo…
Franzindo o sobrolho, a ondulação do mar abaixo de si – enumerou as cores da paleta que se estendia sem fim… Então, as emoções fluíram com as palavras e os reflexos coloridos que, à distância, observou…
Deu um passo em frente e cerrou as pálpebras, sentindo o arrepio do mar a invadir-lhe todo o corpo… Entrou! Flutuou para o horizonte enquanto a sua alma perdurava no amarelo que se ia tornando mais intenso, ocupando o azul que, devagarinho, se desvanecia como num sonho realizado!"
Com o sonho partilhado, mergulhou na tela, cobrindo-se de pincéis de algas.

18 março, 2007

Liberdade

O trabalho foi conseguido! Regina ficou num contentamento que tocava a plenitude.
E o texto feliz surgiu assim:
"Debruçada sobre o parapeito, já desgastado pela chuva, deixou-se estar a receber o vento que trazia, do Oriente, um sabor a liberdade.
Naquele momento apercebeu-se que estava só, que vivia na solidão. Nunca pensou odiar tanto algo que outrora recebeu com tanto agrado. Sim, porque quando ela era jovem gostava, tantas vezes, de ficar sozinha, a pensar no mais íntimo da sua vida, da sua alma.
E hoje, naquele fim de tarde, tanta gente que passou à beira de sua casa… Mas ninguém acenou.
Decidiu, então, receber a liberdade para sempre – deitou-se, reviu os momentos em que foi feliz, fechou os olhos e esperou que a liberdade invadisse o seu quarto…"
Tinha pintado, em imagem, aquilo que agora saía da criatividade verbal de alguém que, pendurando-se no seu olhar, lhe dava alguma da compreensão dos dias.

13 março, 2007

O Avesso do Papel

Queria articular papéis, vontades, valores, desejos - tudo, tudo nos mesmos suportes bidimensionais. Tarefa árdua para Regina, que se assustava com o antes de tudo!
O seu objectivo era colocar-se nas telas brancas, moldando pensamentos em pasta de papel, colorindo-os de pigmentos, simbolizando os tais desejos, valores e vontades...
E os seus pensamentos foram-se dizendo na linguagem dos olhos - uma palavra-chave aqui, uma outra frase emblemática, acolá!
Papéis de jornal, de seda ou reciclados, com as mais diversas texturas, construíam o seu texto que seria lido, em breve, pela sensibilidade dos seus alunos - aqueles seres que observava, num sorriso silencioso quando, cada um no seu lugar, viajavam pela Filosofia e seus caminhos...
Agora seriam eles os autores, agora seriam eles a edificar os textos: filosóficos? literários?
A professora deixaria, por um tempo mágico, de o ser; ela era, agora, a autora das telas que comunicavam a interpretação que os seus alunos lhe quisessem dar.
Regina estava num contentamento ímpar, pois, na Feira do Papel e do Livro da Lousã, iria unir, como num avesso dos dias, a sua criatividade e a sensibilidade nascente dos seus dedicados e acarinhados alunos.
Era agora preciso autenticar as telas com a assinatura, com um nome, o seu nome, com o seu mais recôndito eu.

26 fevereiro, 2007

Nomear a Vida

Regina afirma que as palavras são sempre poucas quando se quer nomear a vida!
As palavras, por vezes leves, tão leves; fluidas como borboletas sobrevoando o essencial; ditas no silêncio de uma madrugada sem sobressaltos - aurora rosada de paz.
O que importa, pensa, lê-se nos gestos que a boca não soletra.
Num olhar, abre-se um dicionário de afectos, que nem sempre é possível folhear.
Quantas palavras ficam por detrás da língua, pensadas a montante de lábios, não desaguando na saliva do dizer?
Regina habita-se por dentro, sabe-o; mas entra em si pelo irresistível olhar dos outros, que lhe sorriem por ela ser assim - uma rainha vulcânica mas sem vaidade. O seu reinado existe sempre com os outros; com os que, com ela, respiram em osmose de hálitos de mãos.
E é no mundo desses seres que ela busca o que não sabe; tudo aquilo que desconhece, para tornar real o que ainda não é - mas será...
Assim, vale a pena continuar viva; viva e com seiva!

24 fevereiro, 2007

A Cor do Riso e do Canto

Regina acordou a pensar, a sentir e a ver a preto e branco!
Olhava o mar, sonoro e matinal, salpicado de leve espuma branca, contrastando com as suas águas cinzentas que imergiam até às profundezas de tudo...
Na varanda de um hotel de praia, remexia as suas areias interiores, em pensamentos descoloridos e nada criativos.
E pensava como os dias podiam ser tão pouco luminosos, apesar das águas e mesmo com nuvens, que não eram suficientes para encobrir o sol, um sol de Fevereiro depois do Carnaval - céu de quaresma...
E, com esta referência, tão pouco a seu gosto, voou, como as gaivotas que à sua frente faziam acrobacias de elegância de asas, até à sua irrequietude de infância e pensou na então quase dor, quando lhe diziam que devia cantar tudo o que havia a cantar, antes que a quaresma chegasse. Depois disso, o recolhimento e o silêncio pautariam as suas partituras mudas. Tinha de ser assim.
Agora, que regressou a casa, ao seu mundo privado, vai sorrindo às areias que foram obstáculo à sua necessidade de querer ser sem deuses, sem morte e sem ressurreição.
Sacudindo mais um grão, aqui, mais um, acolá, começa a sentir um calor de faces, neste mundo sem cor que a acompanhou durante todo o seu extenso dia.
Tocando o rosto recolhe, na noite escura, dois focos de luz rosada e quente, testemunhas da possibilidade do riso, da liberdade de cantar todas as notas, nos seus milhares e milhares de combinações, até em plena quaresma!!!

12 fevereiro, 2007

Sem Muros

"Não devemos voltar a um lugar onde fomos felizes", disse Agatha Christie.
Regina concordava, teoricamente, com tal afirmação, mas a sua prática ondulava-se nos meandros da memória e ela fazia surgir, amiúde, lugares e pessoas, em ecos de vai e vem, numa limitação de felicidade que lhe desfocava o presente.
Agora estava disponível para a fruição da presença de pessoas e lugares, com os quais podia ter uma visão mais nítida, não retrospectiva.
E o que estava para trás enterrou-o, num silêncio não fúnebre, dizendo: - Basta!!!
Não mais voltaria aos lugares onde já ninguém permanecia - assim, desta forma, com a objectividade de cada conceito...
Derrubando o seu muro de lamentações, erguia as tréguas das suas batalhas expiradas.

27 janeiro, 2007

Crescendo de Silêncio

Primeiro acendeu a lareira, como quem coloca pingos de lacre a confirmar a autenticidade de algo - neste caso, do seu lar.
Depois aqueceu-se num som em chamas, com música de Cuba; aquela que fazia carícias nos seus ouvidos, obsessivamente atentos aos silêncios que a rodeavam - queria as cores de Havana para mergulhar num oceano de utopias de vida.
Utopias, por causa da voz de Leonor que, expandindo-se em lágrimas, lhe narrava o percurso de um ser que, tendo-lhe dado a vida, se esgotava e desidratava, agora, em pele de papel de seda - frágil, a desfazer-se por entre as suas mãos, com dedos de filha zelosa.
Leonor tinha percorrido, com ele, cerca de quatro décadas que exalavam desprendimento e poucos rasgos de qualquer intimidade.
Ele era o progenitor, tendo passado o seu testemunho de paternidade, a partir de uma célula reprodutora, minúscula e não intencional.
Mas ela, Leonor, tinha crescido, não de costas voltadas para ele, mas com afectos meramente latentes.
E chegou o dia em que, paradoxalmente, aquele ser se transfigurou numa criança grande, muito grande - um idoso à beira de um final nada feliz.
Passou, então, a depender dos seus cuidados, não maternos, mas filiais, num crescendo de fim, que hora a hora se vai erguendo, expresso numa linguagem não verbal de encolher de ombros frágeis, como reflexo condicionado de sons de que só capta o timbre. Encolhe os ombros quando está comunicativo; nos outros dias, limita-se a estar, com um intelecto que se imagina vazio, preenchido pontualmente pela presença da dor - da espera...
E Leonor fala-lhe, sempre lhe fala e aconchega-o com pele de lençóis e cobertores, que lhe marcam o contorno de um ser físico - quase apenas um ser físico, sem mais.
Regina observa, em imaginação, este cenário de intimidade que só agora, entre eles, surge - um pai e uma filha marcados por um tarde demais para um afecto lúcido.
Por fim, pergunta a Leonor o que é isso de ter tido, e não ter tido, pai - e ela responde com um olhar tão cheio de vazio que só o silêncio, um silêncio frio, opaco e absurdo, é capaz de descodificar.

16 janeiro, 2007

Existindo

Regina era dada ao fascínio da imagem, fixa ou animada e percorria, com avidez, galerias de arte e salas de cinema! Eram esses alguns dos seus grandes prazeres.
Passadas as festas natalícias, que vivenciou com um ânimo que tinha desejado leve e sereno, mas que se lhe tinha apresentado, fruto de circunstâncias peculiares, pesado e agitado, retomou o seu quotidiano, onde o trabalho lhe dava, como sempre, motivos de entusiasmo e de desgaste.
Há poucos dias, resolveu fazer de Coimbra uma cidade desconhecida e foi, por dentro dela, olhar as galerias de ar livre e os filmes de um quotidiano de cidadãos.
Gostou, efectivamente, de um novo plano que passou a ter da cidade, que nunca considerou sua - ela agora podia deslizar o seu olhar sobre um rio que lhe pareceu, até, bonito, a partir daquele plano horizontal à água... Atentou a cada pedaço de urbe, de cada lado do Mondego e calcorreou-o aereamente, numa brincadeira de aconchego de margens.
Terminou o dia em mote de Torre de Babel, descansando do passeio numa sala de cinema (com ridículas pipocas em paradoxal som de fundo), onde a sua sensibilidade se cruzou com labirintos de incomunicabilidade, que continuam também a habitar, nestas últimas semanas de cacofonia, a sua existência.

25 dezembro, 2006

Para Timor, em qualquer Natal

Havia causas pelas quais Regina sempre se batia - uma delas era a causa timorense; e relembrou aquilo que, sobre tal assunto, há anos escrevera, colocando-se na pele de um jovem órfão, em vésperas de Natal...

Tau bátar ba rai,
Bátar mai fali.
Tau ema ba rai,
Ema lae mai.

Deita-se milho à terra,
Volta a vir milho.
Deita-se gente à terra,
Não volta a vir gente.

(Versos elegíacos tétum)

Sinto o cheiro da terra violada, saqueada e queimada e não quero olhar. Vou-me alimentando na hibernação da dor. O meu corpo e a minha alma estão desnutridos; o meu coração perdeu a cor vermelha... Estou aqui, sem réstias de força, estendido no chão, tal crocodilo inibido de lutar.
DESISTO!
Eis-me aqui, filho de gente honrada e sã. Mas já não é eficaz balbuciar o nome de meus pais. Ouço-me chamando mãe e a terra engole o som em eco de sombras. Grito o nome de meu pai e o arvoredo alto partilha-o com as estrelas, numa cumplicidade de noite escura.
Renasço morto...
DESISTO!
Há muitas luas que não surge o cheiro fresco dos campos, de sementes em germinação. O milho, o arroz e o feijão gelaram nas ondas de violência fria. Os frutos não amadurecem com aroma, sabor e luz. A vida desta terra vive de chorar os mortos. Um oceano de tristeza invade todos os caminhos.
DESISTO!
Pela primeira vez, desde o desaire, abro-me aos sons que crescem por dentro do chão e ouço o espírito dos meus avós, penetrando a minha indolente interioridade, dizendo:
- Os mortos estão em paz!
- Já nos ouviste queixar?
- Cuida bem da tua vida!
Abri os olhos - vi, lá longe, o milho ondulante em brisas de manhã...
Escutei o ar - ouvi pássaros ressuscitados à catástrofe...
Aspirei o espaço - a fecundação da natureza despontava em flores de um aroma solar...
Saboreei o chão - havia tufos de terra húmida para alimentar a vida...
Toquei o meu rosto - um sorriso desnorteava as minhas lágrimas estampadas de sal...
NÃO DESISTO!
Os sonhos de menino ainda permaneciam nas veias do meu ser adolescente, e a doce lembrança dos meus antepassados era o mote para quase toda uma vida ainda por glosar!
De pé, como um arbusto que verga mas não parte, revi esta ilha de montanhas azuis, com florestas de impenetrabilidade verde, de rios de água limpa. E, tal crocodilo deslumbrado, provei o vinho tingido dos frutos dos avós.
NÃO DESISTO!
E cheirou-me a sândalo, misturado com açafrão e pimenta.
E vi os cafeeiros em promessas odoríferas.
E olhei os morangueiros que se multiplicavam em frutos.
E acariciei violetas que perfumaram os poros da minha pele.
Um búfalo corria, ao longe, num frenesim de animal poderoso.
NÃO DESISTO!
Corri para casa; o poste - pilar do meu mundo - ainda se erguia para o céu. O telhado estava rendilhado de luz e, a meus pés, o prato de pedra outrora colocado por meu pai, abria-se às espigas de milho que as mãos atentas de minha mãe lá colocara, para que o espírito tutelar pudesse proteger as colheitas da nossa, agora só minha, futura vida. (Não sei se os espíritos são, por vezes, desatentos, ou se são completamente impotentes perante a maldade dos homens...)
Recolhi-me! Com os pés na terra, olhei o céu da minha casa - o dia adormecia e o silêncio falava com voz meiga. Eu fundava aqui, neste preciso e precioso momento, um novo mundo, um lugar de santidade divina que a todos os cantos do meu presente ser, recolhia.
Os mortos sentiam-se em felizes recordações de vida e, lá fora, a alma de um povo recomeçava a surgir!
Por toda a aldeia irrompiam mulheres ensaiando a dança do lenço, exibindo os seus panos brancos de esperança, em movimentos graciosos de morenos braços. Os seus cabelos adornavam-se de folhas verdes, onde brilhavam luas de ouro e prata.
Os homens bailavam, imitando o voo dos pássaros, vestidos de esperança, também.
Saí de casa e juntei-me ao coro de todos os sorrisos, que se desfizeram em serena prece: “... o pão nosso de cada dia nos dai hoje e, sobretudo, livrai-nos do mal. Ámen.”
Esta era a nossa única, a mais sonhada e genuína, prenda de Natal.
E ... NÃO DESISTIMOS!

24 dezembro, 2006

Agora já posso ver

Regina deu-se um novo ser - uma personagem que encontrou no mundo da sua fantasia de realidade vestida. E escreveu assim:
Que cidade subtil! Sem imagens que magoam...
Ouço um coro de crianças que cantam, lá para noroeste, melodias de velas e de pudins. O cheiro daquilo que entoam é absolutamente manso; apercebo-me, pelos timbres, de crianças de todos os matizes, e as vozes das que são negras cheiram a cacau puro...
Do sul, vem-me o travo a pães doces, a açúcar derretido sobre as faces luzidias dos pães de Deus; e saboreio a canela em pó das recordações dos momentos de paz!
A cidade está depositada em humidade matinal; uma das minhas mãos recolhe-se no acetinado do forro do sobretudo... e repousa num lar de bolso, a que já se acostumou; um lar sem outra mão para apertar em solidariedade de rugas - solidão de pele!
O Natal aproxima-se e há que inventar a tonalidade das cores através dos sons, dos cheiros, dos sabores e dos contornos das coisas...
Isto é, seguramente, um vaso; um enorme vaso forrado a papel cheio de pequenas pregas, lembrando o plissado das saias das meninas, em dias de festa. Ouço o som que sai das minhas mãos, em contacto com ele - um som de uma aspereza difusa, nunca agressiva. E ouso subir devagarinho: sinto um cheiro verde a picar-me o rosto. É a isto que chamo um pinheiro; é a isto que chamam um pinheiro... de Natal! Muitas formas redondas penetram as palmas das minhas mãos e, pelos diferentes tamanhos, imagino a variedade de brilhos e, certamente, de cores. As luzinhas, como pequenos focos de alento, incendeiam-me a pele. E continuo a subir, inebriado com o tal cheiro verde que cada vez mais se mistura com o hálito das estrelas... Caminho no caminho da minha eterna cegueira e avivo todos os outros sentidos para que me possa aproximar, cada vez mais, da claridade; a claridade que é diferente da dos outros, mas que não deixa de ser claridade - a minha!
Das guloseimas que comi, das muitas doçuras que desembrulhei desta árvore de delícias, só vos posso dar conta através dos meus dedos que escorrem mel, sorrindo às traquinices cúmplices com os meus deditos infantis, que mergulhavam em torrões de açúcar amarelo...
E consigo chegar ao cimo; consigo tocar os cinco bicos da estrela-guia. (Qual a árvore de Natal que não tem estrela-guia?) E, montado na cauda da fantasia, faço uma enorme e curta viagem até... mim.
O que me tenho dado?
O que tenho construído dentro de mim?
Tristeza! Amargura! Desalento!
O que me pode dar o Natal?
O que pode ele construir dentro de mim?
Vou arranjar um espaço cá dentro, nas entranhas desta cabeça que configuro ampla e disponível para a constante novidade do devir. Aconchegarei esperanças junto dos meus olhos verdes, que só vêem para dentro... e retirarei a palavra “só”, à medida que me for sentindo acompanhado dos valores que muitos dos que vêem, nem sempre conseguem interiorizar.
E... isto é, seguramente, um vaso; mas um vaso diferente dos vasos de barro - é um vaso sanguíneo e eu sei-lhe o sabor, desde sempre, sem nunca ter reparado nisso! Os contornos estão repletos de neurónios que me permitem existir e... aperceber-me disso!
Aqui, os sons saem directamente para dentro da voz - sons sem qualquer aspereza; sons puros. E também ouso subir devagarinho, sentindo um cheiro cálido, como se um cálice de Vinho do Porto se derrubasse e me escorresse através da alma... E invento um pinheiro; um pinheiro com a seiva que só eu sei; cresce-me através das raízes do pensamento e espraia-se nas palavras que para mim sussurro.
Muitas formas redondas impregnam as entrelinhas da minha imaginação e pinto-as com uma paleta de cores sonantes, que consigo ver em virtude das luzinhas aquecerem as sombras das minhas pálpebras, fazendo-me ascender ao avesso de mim!
E, possuído por uma sagacidade que a luz sempre faculta, esqueço os chocolates terrenos, o mel e o açúcar amarelos, dispo a árvore que havia enfeitado com convenções de bolas, de luzes e de estrelas de plástico e... ato a cada ramo um valor imprescindível: para combater a violação dos Direitos do Homem, coloco a INTEGRIDADE; para provocar a superação do fundamentalismo, acrescento a TOLERÂNCIA; para suprir os assassinatos disponho, em leque, o ALTRUÍSMO; para ultrapassar a pedofilia, penduro a INOCÊNCIA; para pôr fim às torturas, desfio a SERENIDADE; e para colar à estrela-guia, invoco o VALOR DA VIDA!
Deste modo, todo enfeitado por dentro, percorro avenidas e avenidas que vomitam brinquedos e ansiedades, sempre perseguido por quatro passos que fazem parelha com os meus dois pés, numa cadência estranhamente compassada. Assustado, primeiro; atónito, depois; finalmente confiante, decido parar para perturbar o transeunte. Mas quem se estatelou no chão fui eu, quando algo insuspeitado tropeçou em mim - um ser enorme, mas de respiração determinadamente tranquila, que me lambeu as faces e me deu um aconchego de pêlos quentes junto ao peito. E neste cumprimento de repentinas boas-vindas, a nossa súbita felicidade derreteu o entardecer de estalactites - um cego abraçado a um cão, em vésperas de Natal... sem solidão de pele.
Ao cão chamei-lhe CONFIANÇA! Agora já podia ver!

22 dezembro, 2006

Viver

Não riscamos a vida - arriscámo-la!
Crescemos por dentro
das nossas mães,
navegando em barcos
de sonho pré-natal...
Mergulhámos nas ondas de um corpo,
que... só poderia ter sido mesmo aquele!
E é aquele corpo,
e é aquele ser que,
paradoxalmente,
se despede de nós
e nos dá as boas vindas
na “boa hora” da luz.
Passámos a partilhar mãe, pai e irmãos,
“os nossos”, como se diz,
numa intimidade inata de desejos consanguíneos.
Olhámos o mundo
tacteando, fragilmente,
acasos e caos diários.
Recusámo-nos marionetas!
Articulámos os nossos gestos
com o ritmo da nossa vontade -
- por vezes frouxa,
por vezes desistente...
Mas sempre nos fomos reerguendo
no orgulho discreto de sermos nós!
Caminhámos para os outros,
esboçando palavras em beijos,
dando beijos com palavras,
num crescendo de trinta e muitos graus de ternura.
E, com um
corpo-natureza,
corpo-doçura,
corpo-leveza,
florescemos vida fora,
em cumplicidade de árvores verticais,
com ramos que se entrelaçaram nos outros,
numa utopia de sorridente união!
(O abraço que transporta uma floresta de emoções...)
E um dia, no nosso rosto,
há-de estampar-se quase toda a esperança,
porque os sonhos não se vendem
em perfumarias assépticas de rugas...
Essa é a sabedoria do tempo,
e que também vem nos jornais,
nos livros,
nos diálogos,
na reflexão!
Tendo a certeza de que o nosso corpo,
o nosso ser,
o nosso eu,
por mais que a razão perceba,
que a vontade queira,
a sensibilidade grite,
a linguagem se exprima,
a emoção se avive
e a inter-relação fecunde,
o nosso corpo
o nosso ser,
o nosso eu,
não viverão eternamente...
Mas haverá sempre um pulsar,
um respirar,
uma vida em nós,
até que a morte,
insidiosa e efectivamente,
não nos separe...
de nós!
Que saibamos viver este Natal, como podendo ser o último para todos nós, pensou ela - o último , o mais precioso, o mais voluntário, o mais humano.

20 dezembro, 2006

Amar sem ser a crédito

Cheirava-lhe a nevoeiro azul!
Abriu os olhos e vislumbrou nuvens acetinadas que a envolveram numa suave preguiça matinal...
Estendeu os seus raios de brilho amarelo e, devagarinho, foi desaparecendo no espaço!
Era uma estrela pequenina e passaria o dia escondida pela luz do sol.
Trim!
Trrrriiiiimmm!
Trrrrrrrrrrriiiiiiiimmmmm!
Hei, humanos, gritou Regina, é hora de acordar dos sonhos nocturnos e andar mecanicamente ao som de todos os relógios do mundo.
Ouvia, sem poder distinguir os sons, a azáfama dos homens que se levantavam para viver mais um dia das suas vidas, apressadas e intranquilas.
Havia automóveis que arrancavam para o frenesim das cidades levando, lá dentro, pessoas compassadas de horários fixos:
- A chupeta da Ana onde ficou?
- E se o Tiago volta a vomitar o pequeno-almoço?
- Leva o Livro de Português, Catarina!
- Até logo, meus filhos!
E os computadores à espera das palavras, dos números e da eficácia; e os telemóveis desafiando, constantemente, qualquer vestígio de silêncio; e o café que é sempre pouco para a necessária velocidade de cruzeiro do pensamento...
Que humanidade tão desalentada, constatou Regina...
Neste lugar, é o roubo que empobrece os bolsos e os valores da honestidade.
Ali, é o pó da guerra que se levanta, empoando o discernimento humano.
Acolá, mancha-se o horizonte de vermelho que escorre, pegajoso, pela vergonha de alguns.
Mais adiante, a água, que nem em gotas chega, desidratando até à alma, milhares de crianças que já aprenderam a chorar sem lágrimas.
Lá mais ao fundo aumenta a febre nos corpos doentes, impotentes para a combater. E os medicamentos fazem voos aflitos, ansiosos por que não seja demasiado tarde.
Mais à frente, a água lava de dor aldeias inteiras, submetendo-as aos seus caprichos.
Mais além, a terra abre-se em labaredas de cores quentes e assassinas.
Basta! - disse; não façam o pino à ordem natural do mundo! Dêem sossego à vida. Párem para olhar! Olhem e olhem-se... E, se possível, cantem! Rebentem as amarras do silêncio entoando, em uníssono, as árias de todas as óperas do mundo. Abracem-se numa solidariedade de mãos coloridas de diferentes tons. Construam sorrisos comuns e falem a linguagem das madrugadas calmas. Levem convosco a candura de todas as auroras rosadas, que emana da vossa insuspeitada sensibilidade. Depositem nas palmas das vossas mãos, agora despojadas de angústia, o vosso olhar carregado da poesia das coisas simples. Toquem-se e dêem beijos em esperanto, numa cumplicidade feliz.
Apaguem as luzes e ouçam a respiração do mundo - cadenciada, apaziguada, serena...
E, amanhã, amanhã quando acordarem, saiam para as ruas enfeitadas de Natal, clamando por amor, numa roda universal. Amor que terá de se oferecer sem credo específico, que se nutrirá apenas de sentimentos nobres, porque sóbrios e que não se venderá nunca a crédito!

15 dezembro, 2006

Colorir a Vida

Levantou-se, já a noite ia profunda, e vagueou pensamentos pela sua casa de silêncios adornada.
De dia, tinha-a vestido de pequenas telas que, geralmente, lhe saíam ludicamente dos seus dedos ágeis. Eram papéis, tecidos e tintas multicolores que se estampavam naquelas superfícies ávidas de construções de histórias simples, à imagem das suas reflexões mais genuínas.
Mas a sua leveza, por entre as horas nocturnas devia-se, hoje, a uma lucidez sem sofrimento, reconhecendo a perpétua inutilidade deste.
Regina enalteceu um pensamento que se lhe impôs como antecipação de um dia novo - invernoso, mas quente. E esse conteúdo reflexivo tinha um nome; um nome colorido, como a sua amizade dos últimos tempos.
Relembrou a calmaria dos passeios sem rumo, nas tardes que terminavam sem que ambos dessem conta, entrando pelas noites onde o aconchego dos corpos e dos afagos ia para além do apagar das luzes das estrelas.
E tocava, à distância, os seus cabelos lisos, longos e macios, que a deixavam sempre com vontade de lhe ler os pensamentos cálidos, que ela começava a saber de cor.
Ofereces-me paz, pensava ele. Dás-me tranquilidade, pensava ela.
Agarrada, agora, à sua botija de noites sós, pressente a solidez de um corpo que a aguarda, bem longe, mas perto de um chamamento inebriante: - Vem; eu estou aqui!

03 dezembro, 2006

O Corpo e o Olhar

Regina gostava mais de o contemplar do que, propriamente, apreciar a sua obra pictórica.
Sabia que, dias antes, ele tinha acabado de pintar o maior quadro da sua carreira artística, O Espírito do Vinho, o título daqueles catorze metros quadrados de tela, concretizados em pouco denotativa garagem, transformada em oficina de cor.
Regina não sabia se lhe interessavam os números para contar a vida daquele ser ou os números para contar a sua obra; não, pelo contrário, nada disso lhe era importante; nem talvez quisesse adjectivar aquele ser de artista! Homem enérgico, imaginativo, sonhador e irreverente, tinha andado algumas décadas a mostrar, visualmente, as suas fantasias mitológicas, com um carácter genericamente bizarro.
Não; não foi a sua vida exposta em obra que a deixou rendida - tratava-se de interessantes telas, quase sempre muito coloridas, expostas em alvas e receptivas paredes de galeria. Tudo, quase tudo era mais ou menos previsível.
A rechear, também, as mesas daquelas salas engalanadas, havia iguarias regionais que aconchegaram muitas dezenas de seres, múltiplos e variados, unidos à entrega da festa.
Mas o que deixou Regina com vontade de correr para casa e escrever, de rompante, este texto, foi algo quase indescritível, que a emocionou em meia dúzia de intensos segundos - ela não encontrou uma extensa vida inscrita naquele olhar, o olhar de Mário Silva, no momento solene e prazenteiro do Parabéns a Você!!! É que, naquele homem, grande e vertical, abriam-se uns belos olhos de criança, completamente disponíveis para tudo o que houvesse a viver; de um corpo com setenta e sete anos surgiu, na vitalidade do seu olhar, muito mais de um outro meio século de obra que ele faria, se pudesse brincar ao faz-de-conta com o tempo...
O universo de possibilidades que os horizontes daquele homem abarcavam, no momento em que a sua idade ia pesando, personificavam, claramente, a vida em sábio modo de intemporalizar!

25 novembro, 2006

Perfume de mãos

Regina aqui está - instalada num presente que a continua a presentear com a possibilidade de diálogos afectivos...
Cada vez menos enceta monólogos de sensações, encostada à certeza de encontrar sempre eco para o suor das suas emoções mais recônditas.
Acaricia as mãos nuas de quem, com uma afectividade aberta à sua, lhe dá desafios de saborosa privacidade.
Ela, finalmente, aprendeu que, na sua vida, convém não acalentar a ideia de poder descobrir grandes amores; grandes e perpetuamente dedicados - não só porque eles talvez não existam mas, também, porque ela não os pode preservar.
Assim, segue em frente, partindo da surpresa do encontro e fruindo, passo a passo, o sempre provisório vínculo, até ao desencontro inevitável e real.
A vida, a longo prazo, deixou de fazer parte da sua nova e pragmática atitude.
Ela sabe que tem potencial humano para profundas dedicações, mas também já vivenciou, décadas a fio, tanta tristeza colada, como anémona, ao ser, que nunca mais vai querer recapitular essas periódicas e dolorosas urticárias.
Hoje, partindo de desejos mais terrenos, sorri aos caminhos que a sua emotividade continua a traçar e que, embora não a levem a lugares muito distantes, lhe trazem sempre a marca de impressões digitais...
Abrigada em gestos de grande autenticidade humana e, por isso mesmo, sem quaisquer promessas de utopias futuras, entrega-se à firmeza de mãos aromáticas - de mãos presentes!

18 novembro, 2006

Homenagem à Dor

Regina estava com aquela sonolência de terra em pousio; deslizava por mais um sábado à tarde dentro de portas, infindável e retemperador, com a languidez de quem necessita, periodicamente, do silêncio animado de milhões de sons de estimação, para voltar a afirmar-se, pela semana fora, num frenesim de trabalho e de projectos artísticos com algumas ardilosas concretizações.
Serviu-se de forte café, muito pouco, mas muito espesso, como sempre gostava, recolhido em chávena de porcelana criada para sair do armário, só mesmo em dias de festa, fosse qual fosse a comemoração...
E o motivo da festa, hoje, era a evocação de uma vida que admirava, que amava à margem de modas efémeras - Frida Kahlo!
Há quantos meses andava com este texto em gestação de cérebro e pele? Não o sabia, guiando-se menos pelo calendário do tempo, do que pela fermentação da matéria-prima das palavras.
Tinha aceite o desafio de pintar sobre o tema da Amizade, para colectiva exposição de muitos e variados artistas.
Animada por tal desafio conceptual, encontrou rapidamente o caminho para a concretização da Amizade, inscrita na tela - impunha-se a homenagem a uma pintora que admirava, mais do que pelo seu trabalho concretizado, pela intenção com que o criou.
E entrou pelo mundo de uma Amizade Imaginária e Mágica que Frida Kahlo revela no seu diário de existência sofrida.
Assumindo-se como o assunto que melhor conhece - ela própria - a pintora mexicana, das cores intensas e intencionais, confidencia a partilha de ser, que lhe encantou a infância, dando-lhe uma felicidade que nunca esqueceu, com uma menina que inventou para lhe quebrar a solidão - da mesma idade, mas com uma alegria e riso frequentes, bem como com a agilidade que, à pintora, por vários motivos, sempre lhe faltara. A amiga etérea bailava como se não tivesse nenhum peso e ela seguia todos os seus movimentos e contava-lhe, enquanto ela dançava, os seus problemas secretos. Quais? Não se lembrava. . .
Regina, com o relato de tal imaginária partilha, partiu para a tela em branco e, porque sempre se orientava pelos momentos de criatividade febril, recriou uma ambiência mexicana, colocando a pintora em orgulhoso pedestal. Dos cabelos, ao seu adorno em flores, dos ossos e músculos frágeis e inoperantes, aos adereços de brincos e colares, assumidos como folclore de esquecimento da dor, assumiu a sua heroína como mote e glosa da temática proposta.
Já com a Amizade exposta na tela, em texto, fotografia e tintas de México, foi observar os espectadores da sua intimista produção.
Então, as pessoas passavam, olhavam e nem sequer paravam para observar. As suas retinas apenas recolhiam a estranheza de um bocado de ferro enferrujado que, na pintura, fazia as vezes de uma coluna vertebral.
Que necessidade de colocar aquilo, ali? Um bocado de ferro enferrujado não serve para nada! - terão quase todas elas pensado.
Regina saiu da Galeria e foi-se embora; fugiu daquele lugar, sabendo que a homenagem que tinha criado trazia inscrita a marca da impossibilidade; ela era para ser entendida, apenas, pelos olhos invisíveis de alguém que vivera uma vida de pesadelo. E Regina, nesta sua evocação que percebeu privada, quase tinha conseguido chegar ao âmago indizível da dor...

13 novembro, 2006

Doce Imaginação

Viessem muitos dias como este e Regina deixaria, eventualmente, de existir - a sua autora faria dela apenas uma saudosa recordação...
Como lhe era difícil, por vezes, encarar a sucessão dos dias e das noites, quando não punha à prova os seus quase constantes dotes de realizadora, construindo filmes que passava em privada tela interior.
Gostava muito mais do que inventava, do que daquilo que lhe era dado vivenciar. E isso aconteceu, mais uma vez, no dia em que se rendeu ao prazer dos sentidos, onde o chocolate deu o mote ao percurso feito dentro das muralhas do que lhe pareceu ser o pecado da gula! Nada se comparou ao que tinha prefigurado dentro de si mesma, em realidades cozinhadas de utopia.
O seu ser animado reforçava o voo de alma sempre que, em sorrisos interiores, fazia privadas festas de felicidade quase não partilhada...
Todos a sabiam incrivelmente comunicativa, mas ela, à hora de voltar para dentro das portas do recolhimento, aparecia a si mesma serenamente sentada no silêncio do seu lar e olhava para o fundo de si, reactualizando persistentes pensamentos que, nos últimos dias, ia desenrolando: muito mais doce e saboroso é, geralmente, o que se deseja viver; quase nunca o que se concretiza...
E com açúcar a escorrer-lhe, sobre o colo, mesmo em ponto de pérola, deitou-se em lençóis cálidos e saboreou os beijos que, nas suas curtas metragens, com sessões privadas, amiúde fantasiava.

05 novembro, 2006

Festa

A atmosfera anunciava a entrada no Outono... Havia uma brisa, já fresca, que emanava um aroma açucarado e Regina abriu-se em curiosidades olfactivas - de onde surgiria aquele odor que lhe atenuava o pensamento, ligando-a ao país encantado de cheiros doces? Mas não era O Perfume, de Patrick Suskind, livro que recordava sempre com enlevo, que a motivava agora; a descoberta de um paraíso do qual ainda quase nada sabia, anestesiava-lhe o discernimento...
E encontrou o caminho - de muro em muro, de pedra em pedra, foi-se aproximando daquele lugar, onde o tempo era marcado pelo ritmo dos sabores.
Assim, a primeira coisa que viu foi um relógio... de chocolate, embrulhado em reluzente papel de ouro branco.
Com as horas prazenteiramente paradas, sentou-se num chão sem cerimónias e... comeu o tempo, não sem antes o ter desembrulhado com brilhantes olhos de eternidade!
Passeou-se, depois, por pequenas ruas estreitas, com todas as casas enfeitadas de vasos com flores de bombons - na primeira, os donos tinham preferido o aroma dos Mon Chéri, e quando alguém se aproximava, cheiravam a Cherry as nuvens por cima daquele pedaço de mundo... A cor rosa-bombom facultava um mágico pensamento: ali, dentro daquela casa, era-se alegre e degustava-se sensualidade, pelas curtas tardes e pelas longas noites de Novembro.
Mais além, eram as janelas que se abriam, ou se fechavam, com persianas de tablettes de chocolate de leite, que os donos comiam e repunham, à medida dos seus desejos sem cuidados. Por vezes, podia entrever-se um beijo selado com aroma de café bem forte e amargo, que sempre lhes estimulava um sorriso sem hora marcada.
Regina, à medida que ia penetrando naquele ambiente mágico de filme infantil, começou a estranhar que a sua roupa se estivesse a colorir, numa paleta digna de loja de gomas... O seu casaco enchia-se, agora, de pequenos botões feitos de uns deliciosos bombons que aguaram a sua saliva, na infância - aquelas maravilhas vermelhas, verdes, amarelas e azuis, pequeninas e com recheio quase sempre demasiado doce e igual, produzidas em fábrica portuguesa e talvez familiar, custando apenas tostões ou poucos escudos (aquilo que era o nosso dinheiro...), estavam agora ao alcance de uma linha!
Adornada com tais encantos e com bâton cor de chocolate, ou de avelã, ou de noz, ou de amêndoa, não conseguiu mais do que cantar... Escolheu uma qualquer Ária que enaltecia a vida e as suas delícias e continuou a render-se aos sentidos vestidos de festa - escolheu pensamentos muito leves, com influxos nervosos de ginjas e rum... Perfumou-se de baunilha e canela e refrescou-se com um aguaceiro de licor de menta! Apetecia-lhe mesmo andar à chuva e dispensou os guarda-chuvas de chocolate que, à porta de todas as lojinhas, eram a promoção da semana.
Terminada a visita àquela vila de fantasia assumida, voltou para casa num carrinho da Ferrero, vermelho, que para ela inventaram, sem motorista e já com os desejos festejados, agradecendo, ao mundo, a divindade consubstanciada em frutos de cacaueiro...

01 novembro, 2006

Laura

A questão era complexa - Regina não o negava! Mas, como mulher esclarecida, podia assumir como a incomodava aquele debate estéril sobre o problema da fecundação... Sabia que as vertentes eram multidisciplinares e que, da ética à embriologia, da neurologia à religião, se faziam alguns monólogos irredutíveis - as malhas da intersubjectividade centífica nem sempre se casavam com os pontos da subjectividade do senso comum, que continuava ainda a acreditar apenas na pseudoveracidade do que os seus olhos nus alcançavam... A Igreja Católica seguindo à frente, nesta cegueira, perpetuando dogmas e hipocrisias de estimação, mesmo com provas dadas - provas e mais provas de sofrimento humano; precisamente aquele que diz querer evitar...
A possibilidade de gerar vida surge, em todos nós, a partir da idade da adolescência... Então, que não se retire a nenhum ser humano o exercício da racionalidade, que fez de nós seres peculiares - assim, problematizamos, queremos, desejamos, receamos; conseguimos privilegiar escolhas e... decidir!
Enquanto assim voltava a reflectir, Regina ia-se aproximando do berço de Laura... Aqui era a vida que, depois de potência se tornou acto - o seu corpinho tinha 48 horas de atmosfera, dois dias e duas noites de vida terrena.
Laura era uma perfeita miniatura humana, esculpida em órgãos e músculos, que respirava um (não) saber de conforto e de descontracção...
Regina ficou todo o tempo que lhe foi permitido a olhá-la, com olhos de se abriam em flash, perpetuando uma convicção insofismável - só assim valia a pena dar à luz: o pai de Laura protegia, com toda a ternura de que era capaz, a mãe de Laura e, neste quadro de presépio não religioso, aninhava-se a cria que eles queriam verdadeiramente acompanhar, responsavelmente, vida fora...
- Quem poderá defender, então, que "tudo se cria"???, gritou Regina - tanta vida mal criada...
Alheia ao mundo e aos seus hediondos preconceitos, respirou a noite e pensou no sono perfeito de Laura, que um dia ainda se rirá, inteligentemente, dos mitos obscuros da Humanidade...

29 outubro, 2006

O Tempo e a Vida

Regina sempre gostou de ouvir tocar os sinos das igrejas a anunciarem, ao longe, a caminhada compassada do tempo sem retorno.
Assim deviamos nós proceder, pensava ela, enquanto caminhava ao ritmo das badaladas das seis da tarde... Isso seria muito mais eficaz, para não cair no mito do que desejaríamos que voltasse a ser presente!
O tempo tem apenas o sinal de obrigatoriedade de ir em frente - aí não há qualquer escolha... Então por que razão tanta gente retoma o toque de horas, dias, meses e anos do que ficou para trás; do que, deseje-se ou não, é irrepetível? E que graça teria poder escolher? Por exemplo, usar os mesmos protagonistas mas, talvez, novos argumentistas para recriar o vivido?
E pôs-se a pensar quem escolheria para realizar o seu tempo ido... E entre Woody Allen ou Pedro Almodóvar, vacilava! Mas isto era ela a colocar uma nota de humor amargo, em tudo o que viveu como lhe foi acontecendo, certa de que tinha encontrado, frequentemente, maus (ou bons?) actores para com ela contracenarem.
E, depois de mais uma cíclica mudança de hora, na noite que acabara de dormir, pensava como criar o argumento que pudesse duplicar aqueles sessenta minutos de tempo de bónus de vida. Ainda se lembrou de contactar um especialista em curtas metragens, mas não foi preciso muita reflexão para suavizar o propósito - é que, passados seis meses, teria de compensar esse tempo, anulando-o!
Esquecida da convencionalidade de acrescentar oportunidades de vida, aqui e as anular, acolá, foi dedicar-se ao gozo de pintar telas, alheia aos sinos que do seu atelier nunca consegue ouvir.

28 outubro, 2006

Caixas de presentes... passados

"Eu sou Aquela de quem tens saudade,
A princesa do conto: Era uma vez..."
Florbela Espanca

Regina ficou com estas palavras a embalarem-lhe a noite, num entorpecimento sorridente, aconchegada a si, por dentro de uma placenta de édredon de luas.
Contou-se contos de passados felizes, em narrativas caleidoscópicas; retomou o nome de múltiplas personagens e saltou de cumplicidade em cumplicidade, olhando os rostos esfumados que à sua frente a percorriam, em lembranças de peso-pluma, numa inenarrável acalmia.
Relembrou jantares de mesa de festa interior e, com cada um dos seus príncipes efémeros, brindou à Vida, bebendo a si e aos seus amores, em memórias apaziguadas.
Sabia que acabava por ser sempre assim que acontecia a todas as pessoas que não possuíam neurónios com sinapses de maldade - ficavam, inevitavelmente, com os seus amantes guardados em caixinhas de presente que, embora nunca mais o fossem, se arrumavam num passado distante, sem necessidade de recurso à naftalina... Elas não precisavam de ser assim tão bem conservadas! Era até importante que se fossem tornando filigrana bordada por descoloridas traças, desfazendo-se em esquecimentos lentos mas resolutos.
A recordação de festas e mais festas, doçuras e mais doçuras, mimos e mais mimos deu-lhe uma languidez de mulher saciada adormecendo, devagarinho, ao som do sussurro da sua involuntária respiração.

18 setembro, 2006

Caminhar

Desceu até aos campos de Outono que, discretamente, rodeavam a sua casa-lar.
Um imperativo de corpo, mas muito mais de alma, fê-la entregar-se à urgência de passos com rumo certo e apaziguador.
E olhou a serra, sucedâneo dos seus montes, de Trás-os-Montes! Como ela lamentava o desenraizamento a que teve de se entregar quando, infância concluída, rumou para outros lugares, deixando para trás um universo de aromas e de ar azul - o azul que sempre a acompanhou, muito especialmente, na nostalgia.
Fez a descida do sol, que aguarelava a vegetação de um amarelo-quente, com velaturas de humidade ténue e foi deixando o seu abecedário de lamentações para, em osmose, se ligar às árvores que geravam frutos abaixo das normas impostas pela padronização comercial - cresciam em exemplares discretos, sem que ninguém os olhasse ou apanhasse... Agora, estavam ali para deleite da sua visão e olfacto, com um desusado e genuíno cromatismo de pele. Apanhou alguns bagos de uva, mergulhou os dedos em figos inebriantes e sorriu às rosadas maçãs que, demasiado maduras, produziam um efeito paradoxal... muitas iam apodrecendo, nos próprios ramos, num percurso estranho de morte...
No regresso, já com calor de órgãos e pensamentos, Regina retomou a ideia de que o lugar onde vivia não era, efectivamente, o sítio das suas grandes paixões, mas percebeu que gostava dele; gostava de uma forma não exacerbada...
Então, deixou uma pergunta a circular por dentro de si: não seria bom usar este lugar de vida, sem sobressaltos, para o aplicar, como metáfora, à sua hiperestesia de paixões humanas?

13 setembro, 2006

Claridade

Os dedos de Artur Pizarro atravessavam as alamedas e os jardins de Liszt e os seus, pela noite, comprometiam-se com a sua invenção, de tranquilidade vestida, cantando a vida que se certificava pela respiração de um relógio, onde o tempo se dizia em minutos longos, que bocejavam a escuridão sem sobressaltos.
Regina queria prolongar, pelas horas do dia, o que a noite lhe estava a oferecer de braços abertos - sonhos de pele morna e de intenção quente, que emanavam do texto de um corpo que esboçou, a seu lado, velando-a em silêncios acetinados.
Perguntou a si mesma o que mais desejaria, ao acordar, logo que lhe fosse servido mais um dia.
Pensou... Semi-adormecida, pensou... Ocorreram-lhe possibilidades insuspeitadas, realidades grandiosas que tanto gostaria de poder concretizar mas, o que se lhe impôs de mais desejado que o regresso de D. Sebastião, foi poder sorver a manhã de quase Outono que se aproximava; abrir os olhos e ver - ver claro com os olhos e com a razão: empacotar vários sonhos nublados e ver claro... Nítido!

12 agosto, 2006

Julho

Regina não se lembrava de, alguma vez, ter percorrido um mês de Julho com tão frequente e natural alegria!
Pendurada noutro sorriso, como antes havia referido, desembrulhava-se a si e ao motivo do seu júbilo, como rebuçado, bombom ou caramelo, surpreendendo-se amiúde com novos aromas que conquistavam, quer nos rituais de beijos urgentes, quer na ociosidade de carícias longas, pelo calor das noites de estio.
Partilhavam jantares condimentados de conversas múltiplas e atentas - ouvindo-se com irrepreensível atenção, que chegava mesmo a saber a encosto de ombro.
Com o fim do mês de Julho apagaram-se, indelevelmente, as noites acesas.
Não houve despedidas, nem se esboçaram esperanças - apenas um silêncio invisível vai ecoando mágoas, pelos dias e pelas noites que passam, ouvindo-se em sonoridades cada vez mais difusas...

28 junho, 2006

Verão

Aguardou...
Esperou quase dois longos meses de auroras não sorridentes.
Ergueu os dias e deitou as noites, em cadências iguais, em simetrias de agitação e apaziguamento diários, numa quarentena de obrigatoriedade de vida, sem que se sacudissem quaisquer neurónios de alegria de entranhas.
Instalou-se num silêncio de pausa sem adjectivações.
Um dia, já o mês de Junho ia longo no seu curso, acordou da letargia, de sorriso pendurado noutro sorriso, de palavras dadas com outras palavras - macias, cúmplices, partilhadas.
Ao texto proferido juntaram-se lábios, saliva e um Gosto de ti... coadjuvado em abraços e mimos urgentes, em osmose de suor efectivo; não latente!
As madrugadas aclaram-se agora dentro dela, como se aclara a roupa com que veste o corpo diurno - não ostenta, ao peito, qualquer troféu de felicidade mítica, mas deposita, no seu coração apaziguado, o brilho do ouro que, só para ela, luz.
Regina senta-se na varanda do presente, bebe a água cristalina que lhe adivinha o rumo e sai de casa com passos firmes, tocando à campainha do seu afecto sem hora programada.

30 abril, 2006

Fonte de Águas

Regina acordou com um corpo quase inerte dentro de si; estava a querer começar a regenerar-se de uma intoxicação de sonhos prematuros. Não queria, sequer, olhar a fonte das suas expectativas, pois ela era a origem enganadora dos seus sonhos... Jorrava sempre em demasia, deixando-a com a cabeça inundada de imagens de harmonia e céu. Mas tinha de o fazer.
Regina precisava de aprender, sendo essa a terapia de caldos de alma, que os sonhos não se devem viver ao contrário, por antecipação... Eles não podem ser a matéria-prima dos nossos desejos. Estes devem crescer, em dois seres, quando em ambos há uma justificação de pele; quando há uma osmose de poros e quando um olhar habita em outro olhar, abrindo janelas de possibilidades - só assim se tem direito ao sonho e ao dever de sonhar - principalmente acordado; porque só aí é legítimo... porque só aí se pode acreditar!
E Regina tinha o vício, mais do que o hábito, de pensar sem a cabeça no chão, na terra: sonhava, quando ainda não devia, e acabava por se ver obrigada a engolir, quase sempre, a fonte das suas expectativas, com água imprópria para consumo.
Quando é que ela se cansará de envenenar o presente com uma miopia sem futuro???
Isso é o que ela vai querer saber, para se saber mais cristalina.

25 abril, 2006

Ópera

Andou anos a preparar toda a cena...
E, hoje, dava-lhe a forma que a sua sensibilidade madura lhe facultava.
Sabia, previamente, que tinha de haver uma catadupa de emoções, mas essa era a realidade que sempre a conduzira no palco da existência.
Escolheu, com paciência de perito, estruturas, materiais, tecidos, instrumentos musicais, vozes e personagens - duas, como sempre quis.
Montou um palco de vidro translúcido, sob o qual passava um regato de transparência de água lavada e encostou-o à colina rochosa de uma qualquer serra do mundo - apenas era necessário que a habitasse um silêncio de breu.
Pensou numa frase de poeta que lera, há dias, e que lhe conduziria o caminho: Precisamos de amores e amantes à altura das lendas inventadas pelos nosso espíritos...
Ligou amores e amantes num só vocábulo, por lhe parecer absurda essa diferenciação, e continuou com a sua empresa de obra a construir...
Do silêncio nocturno fez emergir os sons, deixando aos pássaros de cantos eternos a escolha dos instrumentos - havia pianos, clarinetes, oboés, violinos, violoncelos, harpas e toda uma panóplia de brilhos de metal e madeira, que abriam clareiras de luz em desafios de claves de Sol...
Postos os sons, fazia agora crescer a cena...
Ele estava só, ouvindo acordes de esperança que lhe reconfortavam emoções sem palavras. Em cena, estava só e sozinho - mudo e estático. As suas vestes de veludo púrpura davam-lhe a solenidade de um encontro que tinha hora sempre adiada, num relógio quase parado de desistência.
Então, agitaram-se as águas do regato, que escorria sonoridades sóbrias, sob o palco de vidro translúcido, como ela insistia que assim fosse, em frequentes obstinações estéticas...
É que Regina queria que aquele homem a visse, que ele a namorasse naquela velatura de vidro e noite.
Assim, ao som triunfante dos metais, saiu das águas frescas, cheirando a perfume de limos verdes e sorriu, porque ela sempre sorria, assumindo-se numa transparência de tecidos leves que se lhe colavam aos poros, deliciosamente húmidos.
Já no palco, perante a majestade de um homem vertical, cantou e dançou através de uma voz melodicamente corporizada.
A encenação que a seguir esboçou está no segredo, não dos deuses, mas dos homens - dois seres humanos que deixaram a ribalta para, nos bastidores, construirem, peito contra peito, a grandiosidade do que a boa vontade humana sempre terá para dar - O Amor, em presença e em justificação de Ser!

02 abril, 2006

Penso, logo SOU

A cortina que esvoaça numa diurna sonoridade de pássaros marca-lhe o ritmo do pensamento e Regina deixa-se ficar, poisando-se em tarde de primavera que esqueceu invernos e severidades. E vai tecendo sonhos de cortina branca - sonhos translúcidos com contornos vagos, acetinando as palavras que, hipnoticamente, para si balbucia: tarde, músculos preguiçosos, maciez de pele, sonolência de olhos mansos - tréguas!
Como é reconfortante possuir células que sabem diluir relógios escorridos de ponteiros, escreve em morno e semicerrado olhar.
Regina senta-se no trono da sua luta e descansa, agora, deixando deslizar o manto, aveludado de púrpura, pelos contornos das suas formas sinuosas, para assim voltar a caminhar, segura, numa nudez inscrita de pensamentos, rumando até ao Parténon da sua cultura, semeada de Filosofia Grega e agradecendo, aos homens, a graça do discernimento.
À Grécia irá confirmar o que, há trinta anos, vem aprendendo - que o Homem (ser humano) é a medida de todas as coisas.
E, para o que der e vier, ela tem a humanidade toda inscrita em cada poro, que partilha com os outros em osmose, quantas vezes inventada!...

04 março, 2006

Aliadas

Havia pedras, poeira, jardins que já não o eram e uma avenida completamente do avesso!
Para onde quer que se olhasse, o cenário de chão revolto fazia tropeçar a sensibilidade menos frágil...
Quer fosse dia, quer a noite se afirmasse, não havia hipótese de alterar aquele mundo urbano.
Os calceteiros talhavam pedra e solo, num puzzle de peças mais ou menos afagadas...
Regina perdeu-se naquele rebuliço de desequilíbrio e desceu a avenida, quase em correria, para tentar escapar à desarmonia de sapatos empoeirados... Se pudesse, voava pelos telhados dos prédios eternamente verticais, não fosse aquele lugar o espaço dos aliados...
E, sem que o quisesse, viu-se obrigada a parar - parou por um imperativo ético e estético, ou estético e ético; tanto fazia - ali, a ordem dos factores era mesmo arbitrária...
E voltou a ver operários construídos e calçadas em construção; e voltou a sentir o pó na boca e nos olhos. Mas parou.
Ali, num discreto pedestal de indelével pedra, assomou uma figura de jovem mulher, de uma nudez prazenteiramente sentada, com hirtos seios brancos e suaves, numa atitude de quem ia saltar ao primeiro desamparo. Mas nunca, nunca se mexeu!
Regina ficou ali, longo tempo, a olhá-la, fixando a alvura da sua dignidade, mas chocada com tão perfeita imagem deixada, assim, nua, à mercê de todos os olhares de homens com cio.
Ambas aguardavam que fosse reposta a ordem - ambas apelavam à urgência de um jardim de tapete de flores, onde pássaros e crianças dessem o mote às tardes de verão.

25 fevereiro, 2006

Prémio

Regina desconhecia que um computador lhe poderia dar um prémio - prémio esse que não era em dinheiro... Tanto melhor!
Nos seus contactos com o mundo, através da fantasia que a Internet lhe facultava, e no jogo das apostas que facilmente podia fazer, ganhou uma pessoa... Saiu-lhe um Jackpot de atenção, de aceitação de si, de ternura gratuita.
Como toda a gente que aposta neste jogo, também se iludiu com o usufruto do outro, pensando que era nele que estava o segredo de uma vida que passaria a ser vivida nos antípodas de qualquer frustração!
Que miopia fazem as emoções ao olhar - pensou...
Aquietou-se primeiro e depois rumou a Norte, sem desorientação... Nesta viagem que voltava a fazer, esperava-a um Porto com porto - para percorrer ribeiras e rios com foz feliz, porque sábia de passos seguros. Ia ela na sua grandiosidade interior que se afirmava em cada gesto cúmplice com o mundo; um mundo que agora surgia, não através da paixão, mas de uma partilha de existência passeada a dois, por todos os caminhos onde houver rios que correm por sua natureza e um regressar de si ao leito; um repouso a um, por dentro dela mesma, uma vez que sabia que a vida nem sempre pode dar, aos homens, fusões de Adão e Eva - por vezes, é apenas um paraíso sem perfeição, um paraíso terrestre, mas muito, muito, muito azul.

08 janeiro, 2006

Noite habitada

Regressava a casa pelo caminho sinuoso da noite, desvendando os trilhos de uma estrada curvilínea, mas exacta, envolta em nevoeiro lácteo, a revestir de secretismo cada árvore, cada folha pálida, cada pássaro calado ao som da escuridão...
Já meia noite tinha passado e ela sentia-se acordada para um dia ao avesso, habitante de pensamentos em rewind, numa acalmia de apenas ter de se conduzir até ao seu cordato abrigo de conforto esboçado por si.
O silêncio que a esperava na madrugada de repouso manso e a certeza dos gestos rotineiros de se aconchegar na sua cama de lençóis brancos, coloridos pelo cheiro do seu perfume e pele, levavam-na a uma viagem sempre com o mesmo destino. Sabia então que podia, mal o sono a adormecesse, acordar por dentro de si, de mão dada com uma enorme fantasia que nenhum livro de histórias para adormecer poderia inventar.

03 janeiro, 2006

Rés-do-chão de Janeiro

Descia do 12º andar, no elevador do tempo, para o rés-do-chão do calendário de Janeiro.
Estranhamente, tinha calor e procurava que os seus músculos fossem pequenos acumuladores térmicos para os periódicos frios do seu céu de encéfalo, por vezes em tempestades de madrugada...
Despedia-se de um horizonte de água, espelhando asas de gaivota de cor de nuvens.
Os registos que, daquela cidade, levava consumavam-se em filmes de células e celulóide de luz diurna, sem pensamentos de reveses!
Voltava para casa com um tesouro de imagens que não se compram em qualquer loja da Baixa de qualquer cidade do mundo - os tesouros que, sendo gratuitos, só o seu olhar sabia registar, numa fome de colagem de puzzles de existência - peças de um jogo que as ruas da cidade do Porto lhe davam, amiúde, grandiosamente.
Regressava com um bordado de paredes - bastidores de vida, obrigatoriamente para a sua casa de inverno, com a cabeça numa pequena nuvem em ponto de matiz de primavera...

08 dezembro, 2005

Lar

Regina segue os seus passos e diz-se: - Vamos!
Desce as escadas que a levam até a um esconderijo com lenha, lenha para se aquecer sem se queimar, e compõe um cesto de vime e de outono; carregada de esculturas numa aleatória Land Art, olha a sua casa do lado de fora e sorri à pequena luz acesa, presença da sua presença no lar. Pensa, então: - Estou em casa...
Sobe-se com pernas e braços que suportam a certeza de calor de toros, pinhas e fogo ancestral e repousa, já porta dentro, aquietando músculos e órgãos, surpreendidos com uma carga quase insustentável...
Passa então a misturar o cheiro da lareira com o som do Gloria de Vivaldi e atarefa-se nessa empresa de sinestesias, não vão as suas incompreensíveis sinapses pregar uma partida ao festim sóbrio que agora prepara.
Aquecida com a temperatura rubra dos sons, aconchega-se em si própria, dando-se as mãos, a sua mão direita e a sua mão esquerda, que se unem com pressa, mas nunca em prece...

06 dezembro, 2005

Afluente com cédula!

Olhava uma ponte que, num salto de pernas de cimento, ligava uma à outra margem de um qualquer pequeno rio, afluente de um curso de água maior, mas com cédula de nascimento, também.
Nada, mesmo nada à sua volta lhe dava qualquer sensação peculiar - tratava-se de uma ponte sem história por sobre um rio afluente de um curso de água maior - insistia no trivial pensamento.
E em que parte do mundo é que os rios menores possibilitam o conto?, perguntou de neurónio a neurónio. Em muitos lugares, respondeu; sempre que as aldeias namoram os rios, os mais bonitos rios - os seus...
Quis deter-se, pois alguma coisa a fazia insistir naquelas minúsculas perguntas, numa descontracção de espaços e tempos aquietados.
Surgiu, então, um nome; um nome inscrito num baixo relevo de angústia; um nome que justificou a imersão do seu corpo erecto, em mergulho de solidariedade de limos microscópicos, eternamente húmidos, aguarelando de esperança águas em percursos de apatia de silêncio...
Foi retirando, peça a peça, as vestes supérfluas e fluiu rio adentro, sem qualquer necessidade de tristeza líquida, pois suportava-a uma macia densidade de choro de água paradoxalmente doce, sorvendo as lágrimas que penetravam nos seus olhos de penumbra, mas não de desistência.
Sacode agora, nas margens, as últimas gotas de um rio que se lhe lamentou junto ao ser - um rio com um nome que lhe ficou, para sempre, colado às órbitas: Rio Pranto!

03 novembro, 2005

Galeria Privada

Regina salpicava-se de um invulgar amarelo, através de pequenas flores que eram pontos de aroma espalhados por dentro de si. Por osmose, o seu sorriso desfolhava-se em luz e em ousadias de futuro...
Lembra essa manhã de Fevereiro cinzento e vê-se a entrar, de soslaio, na energia de um homem vertical, tendo-o imediatamente querido em desejos de mulher suavemente despida...
Durante muito e muito tempo, foi-lhe chegando a voz masculina do homem firme, que ia inscrevendo palavras na sua imaginação de arrepios de pele tocada.
Até que, um dia, essa voz se aconchegou finalmente ao seu ouvido, por noites de lareira acesa em Novembro, com um corpo estranhamente trémulo e inseguro...
Depois, mais de mil dias se passaram, feitos de muitas visitas enfeitadas do cruzamento de palavras, onde o amor se articulava com a esperança e a alegria, ou com a incerteza e a mágoa...
Por fim, ele, no seu ofício de animar a pedra em formas de vida, e todo coberto com pó de granito, esculpiu-se perante ela, com olhos de pranto que inundaram o seu rosto, abrindo regatos de tristeza sobre a poeira da pele e abraçou-a com a autenticidade dos incomensuráveis momentos de vida; aqueles que Rodin já tinha, há muito, perpetuado...
E assim ficaram os dois, unidos para sempre, na sua galeria privada de afectos!

24 outubro, 2005

Futuro plural

Bolbos de rosas dançavam, em círculos concêntricos, nas chávenas com uma agradável Vista Alegre, porque saídas da letargia de corpos frios, guardados no cheiro oco do tempo. Aqueciam-se, gota a gota, por dentro e o hálito da infusão subia jovialmente até duas bocas, com comissuras de entardecer de Outono, alheias à compostura de gloss...
A lua estava plena, enorme, e protegia-as, de longe, fazendo um harmonioso trio de certezas - nunca tornado algum se levantaria para destruir porcelana, pele ou vida!
Bordou, com Regina, sob aquela pálida luz, caminhos de confidências em ponto cadeia, porque as suas recordações lhe davam isso mesmo - prisões de vidas, unidas nos abraços de fotos que, espalhadas pela casa, a habitavam de silêncios que já nem se ouviam mais gritar.
Regina continuou a acarinhá-la, falando-lhe de um futuro que, se tivesse esse poder, desenharia para ela, a fim de lhe dar a transparência de vivências de aguarela, tão claras e tão leves, como gotas de chá derramadas em porosa toalha cor de pérola.
Quando se despediram da festa, sem música audível, a lua entrou pela noite dentro de uma casa com duas chávenas já completamente arrefecidas e iluminou a aguarela, ainda húmida, para que o caminho do futuro da São pudesse, um dia, voltar a emoldurar-se num ser plural.

10 outubro, 2005

Fitas

Organizava a sua casa interior pensando, por exemplo, que seres lhe tinham moldado os gostos, pois os desgostos não os queria evocar, certamente!
E foi ao compartimento das fitas - de muitas cores, de muitas tramas. Puxou metros e metros de memórias, formadas por quadradinhos que lhe atravessavam neurónios enfeitados de celulóide...
Começou por vestir-se, inevitavelmente de Azul, por causa da luta que continuava a querer travar contra a adversidade... Não negou o Branco nem o Vermelho, uma vez que os valores que foram a roupagem da Revolução Francesa também a educaram, impondo-se como imperativos categóricos quotidianos.
Com muitas cores vibrantes, entrou em todo um universo concretizado em hospital psiquiátrico, onde a frase "Ninguém pode dizer que não tentei..." acabou por servir-lhe, com frequência, de exercício de vida. Recordava, também, um enorme índio de silêncios sábios... Deste modo, foi Voando Sobre um Ninho de Cucos com profundas impressões de fita inflamável.
Ficou com olhos de oceano, em nome da solidariedade e da não desistência, no filme Em Nome do Pai e em Tudo Sobre a Minha Mãe reviveu a fatalidade da morte precoce que invade, com rosto sádico, o suave decurso da vida, muito mais quando se é jovem...
Gostaria de ter recordado, de outro modo, os azares, recortando a realidade à boa maneira de um Eduardo Mãos de Tesoura, para poder aparar todos os argumentos, levando-os a um eterno, mítico e prazenteiro Happy End!